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Um dia, briguei com Deus...
Ana Reis, 2017.

Rompi com todas as crendices piegas que circulam em torno de Algo Maior.
Como um pacote de osso, músculo, pele, sangue e sinapses, desisti de
acreditar que haja algum sentido nesse intervalo de tempo entre nascer e morrer.


Dediquei-me a dar fim nas minhas manias premonitórias e intuitivas.
Ah, foi libertador! Nada de orações, culpas, pedidos e todo blá-blá-blá
Agora, sou Eu!


Centrado em mim, mergulhei na biologia, física, química e tudo o
que fosse cientificamente comprovado ou visualmente acessível.
Até as bobeiras de amor eu não deixei mais que me afetassem.
– Dá para ver?

-  Não?
- Então não quero saber!


Percebi que me relacionar com Deus não fazia falta alguma. E por força do
hábito, dei para Deus o nome de Liberdade.
Ao brigar com Deus, percebi muito melhor a natureza. 

Estava mais atento à concretude da vida.

 

Refiz a horta, cuidei de couves, repolhos e alfaces.
Ficava surpreso com meu poder criativo de dar condições de vida àquelas
sementes, cuidava do solo e da temperatura.


Enquanto cuidava, me relacionava objetivamente com minhocas, tatus-bolinha,
pulgões. Notei que algumas coisas inexplicáveis aconteciam, como
repentinamente um ataque de formigas ou uma safra melhor que a outra. Mas
nada esotérico, simplesmente observei que há um mundo invisível de
condições, ainda não detectado pelos meus sentidos humanos, porém sem
leviandades místicas, só não perceptível.


Passei a fazer minhas obrigações diárias como rituais de vida.

Ter essa liberdade de romper com Deus me aproximou da vida em si, da matéria que se
compõe e decompõe. 
Comecei a pensar que a eternidade pode tranquilamente ser meus “quarks”
eternizados na natureza, rolando universo a fora e compondo-se em outras
ligações atômicas.


Imaginei-me fluindo solto num sopro, como um dente de leão, cruzando
fronteiras humanamente criadas ao longo do globo terrestre, voaria sem apegos
religiosos ou dogmáticos.


Sim estaria pleno no universo sem fronteiras, como um pássaro que não
recebe ordens de radares ou uma baleia que ignora que existam donos de
partes do oceano.


E nessa liberdade plena de ser o que eu desejasse, percebi minha vida muito
mais pulsante. Uma energia revigorada passou a me animar. E animado,
assustei-me com a sensação de Alma Viva.


Que alma é essa que insiste em provocar despretensiosa minha descrença?


Afastei-me dessa ideia, analisei, aprofundei e conclui ser somente animação.
Claro, lembrei daqueles chatos que adoram rebuscar dizendo que
etimologicamente o termo anima, significa "o que anima", ou seja, a fonte da
vida de cada organismo, sendo eterna. Não, por favor, estou falando do
simples movimento gerador de corrente elétrica corporal!

Ufa, quase fui pego.


Entendi perfeitamente que o movimento dos átomos gera energia que favorece
meu ânimo, e o frescor da liberdade traz uma paz e bem-estar que ativam e

movimentam minha energia pessoal. Nada de Qi como dizem os chineses ou
Prana, Kundalini, Canal Shushumna, Píngala e Ida, aff... eu quero provas! Tudo
bem esclarecido e comprovado.


Para não esquecer meu tratado criei uma parede com fórmulas matemáticas,
movimento eletromagnético para eternizar minha memória e nunca cair nesse
engodo das crendices que tentam dominar e cegar o cidadão comum pouco
esclarecido. Não o meu caso, no meu caso, não!


Diariamente revisitava a parede e fazia ajustes, minha crença era viva e
atualizada. Relia os porões de minha memória é dava cheque-mates em
hábitos bobos como dizer “Deus te acompanhe”, “Graças a Deus”
E cada dia mais energizado e de bem comigo, fui me relacionando ainda mais
com os quatro elementos, com os seres, tudo naturalmente.

 

A parede tornou-se um quarto onde cultivava meu “ateísmo”, lá fazia meu ritual diário de
racionalização e ancoramento lógico.
Parei de me dizer ateu, pois não precisava mais brigar com Deus, simplesmente
ele deixou de existir, e quando algo deixa de existir, acabou.
A liberdade interior foi plena!


Passei a olhar o mundo sem medo, as coisas são! Ponto. Nasce porque nasce
e morre porque há um tempo de desgaste. Sentia-me íntegro.
Certo dia senti tanta gratidão em poder existir por mim, sem um Pai Celestial
Protetor, sem pecado original e dívidas de Adão e Eva, que criei meu ritual de
gratidão à vida, às belas rosas que colhia, as risadas que podia dar com meu
cachorro, porque sem dogmas eu era uno com a natureza.


Descobri que solidão existe para quem não está conectado consigo, para quem
não tem gratidão e integridade ao presente. 
Agradeci, celebrei e inventei meu próprio canto. Até me lembrei de Davi e suas
danças circulares como um dervixe, dançando ao Senhor. Porém eu não
dançava para um Senhor, eu dançava para vida, para o vento, dançava para
mim.


E assim fui vivendo sem a presença de Deus, conectado somente à natureza,
com meus cânticos pessoais que animavam a energia, e só por gostar da palavra,
continuei a chamar essa energia de alma, somente pelo som.


Livre desde o dia em que briguei com Deus, nunca mais senti a separação: eu
sou o Todo Poderoso Universo, sou poeira da galáxia, sou luz rolando solta por
aí, sou tatu bola, sou Nada, sou Você, sou qualquer coisa.

 

Assim o medo desapareceu e percebi a presença de um vazio pleno, eu não era mais o tal “a”
faltante dito por Lacan.
Meu coração acelerado foi tocado pela minha Presença na vida.
E da mesma forma que parei de me dizer ateu parei de brigar com Deus, pois
se torna desnecessário questionar aquilo com que nos apaziguamos.


No dia em que briguei com Deus, tive a liberdade necessária para encontrar-me no Todo.

Pintei o quarto das fórmulas com a cor do sol e abri as janelas
para cantar e dançar meus cantos. Lembrei-me de Quintana me dizendo: eles
passarão, eu passarinho!


Voei livre, leve e pleno de vazio que se sente na grande conexão.
Só depois de brigar bem brigado com Deus, eu pude realmente sentir Sua
Presença, sem obrigação, sem rituais ensaiados, sem culpa, sem medo, sem
poder. Foi nesse período que Deus se tornou minha vida. 


Deus Sou Eu dançando na chuva.

Deus somos nós em conexão amorosa.
Deus é a natureza cantando seus cânticos.
Deus simplesmente É; sem exigir explicações.

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